Celina Brod
Paz e amor a qualquer custo
Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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Faz quase seis meses que estou longe de casa, longe da minha língua, dos meus filhos e dos beijos que normalmente recebo ao longo do dia. É preciso reestabelecer o equilíbrio diariamente quando as coisas essenciais não se encontram ao alcance dos braços. Vive-se com o emocional por um fio. Foi solitário e esmagador saber do ocorrido na escola de Blumenau, pensei na dor e o horror humano, refleti sobre a capacidade da perversidade de motivar atos tão violentos quanto impensáveis. Uma cena macabra, em um ambiente que não combina com a palavra ataque. Sucumbi, passei o restante do dia com a garganta comprimida.
Me afastei do mundo e das pessoas, me fechei para as redes e as notícias. Ser capturada por um vídeo de alguma celebridade falando da sua rotina de skin care parecia intolerável. Somos seres violentos e guardamos dentro de nós um ímpeto amaldiçoado que se manifesta na fúria de um homem solitário, no ressentimento de uma massa, no tapa de alguma mulher traumatizada ou no medo de um grupo hostilizado. "Há uma guerra civil dentro do homem entre razão e paixão", escreveu Pascal. De todas as guerras, a mais perigosa é aquela que se funde com o poder de um Estado, falo da violência projetada pela vontade de um líder obcecado. Seus valores sagrados podem aniquilar corpos como se fossem baratas. Sagrado aqui significa inegociável, inquestionável e absoluto. Uma vontade inspirada pela profecia de um futuro glorioso desconhece acordos humanos. Uma vez sacralizada ela fabrica a realidade que deseja e ignora os limites que inventamos para enfraquecer nossos desejos mais animalescos. É uma vontade assim que habita líderes perversos.
Meses atrás conheci Nick, um ucraniano da minha idade, que nasceu exatamente no mesmo dia e ano que eu. Ficamos pasmos com aquela coincidência. Nos esbarramos por acidente, no lugar onde pessoas com histórias interessantes se esbarram, balcão de um pub irlandês. Nick disse que se as pessoas soubessem o que está acontecendo na Ucrânia não dormiriam à noite. "Você não tem ideia do que eles estão fazendo lá dentro", falou, olhando para baixo. Decidimos mudar de assunto, qualquer imagem mental relacionada ao real brutal se sobrepõe ao trivial. Ao constatar o absurdo, o que uma mente minimamente empática e moral deseja? Deseja o fim de tudo isso, deseja a paz e reconhece claramente o que significa uma liderança assassina.
Lula está correto em apontar a necessidade de um acordo pacífico e da inutilidade da guerra, mas essa paz bonita perde sentido quando ele não reconhece diferenças claras e distintas. A liderança de Putin é sinônimo de perseguição das minorias, homofobia, nacionalismo, colonização de países livres e democráticos, sequestro de crianças, crimes de guerra, envenenamento, hostilização de cidadãos russos, ausência de imprensa livre e uma lista que enfeita os portões do inferno. Portões que só são belos aos olhos narcisistas de um líder genocida. Mas, vamos dar o benefício da dúvida ao presidente, talvez ele não tenha visto as imagens de Bucha, não saiba os detalhes da invasão ou quem sabe acredita que as informações são ideologicamente distorcidas. Estourando os limites do pragmatismo, talvez ele tenha medo da reação do Kremlin e para isso está disposto a omitir a diferença entre um líder fascista e uma população que resiste.
Mas, como pode um político experiente, que foi perseguido pela ditadura, não reconhecer essas diferenças? A verdade é que o seu histórico de política externa revela comportamento complacente com autocracias de determinada linhagem e imaturidade democrática ao pensar que lideranças fortes podem atropelar princípios de justiça. A chegada do chanceler russo, seu roteiro de viagem e suas falas de alinhamento projetam aos olhos do mundo não a imagem de um Lula pacifista, mas de um líder cujas lentes são injustas, embaçadas e ingênuas. Ora, ingenuidade é objeto escolar, na política ela raramente senta à mesa. Veremos.
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